foi encontrada
… esventrada nas escadas da Igreja. Nunca tinha sido visto nada semelhante naquele pacato bairro onde os bons costumes e a passividade reinavam, como se de uma condição física se tratasse.
Primeiro pensaram que pudesse ser um assalto. Rondara por ali um estranho de aspecto duvidoso. Não lembrava ninguém que alguma vez tivessem visto. Gritaram: – “Foi ele com certeza, um estranho” mas, rapidamente se provou que não poderia ter sido. A vítima estava na posse de todos os seus pertences e o estranho tinha abandonado o bairro ainda a vítima estava viva, jantando, no seu pequeno apartamento a que chamava carinhosamente – pardieiro.
As velhotas, que todo o dia à janela observam o burburinho pouco buliçoso daquelas ruas quase mortas, acreditavam que num crime passional. “Mas não conheciam à pequena qualquer relação, amante, amigo ou familiar” – refreou o padre. Não fazia qualquer sentido, e depois de muita argumentação o comissário ergueu a voz: “Podemos afirmar que não se tratou de um crime passional”.
As horas passaram e a azafama era grande junto dos agentes da policia ali presentes, as discussões e argumentos fortes, até que um agente de base conseguiu desvendar todos os elementos básicos deste crime. Passou então a explicar:
“Sabendo nós e toda a nação que não é capaz o Estado de realizar uma previsão sobre o estado das coisas, a economia e todas as outras artes divinatórias da ciência moderna não foram capazes de eficazmente prever o que todos sabiam, coube assim, ao estado recorrer a outros meios previsionais. Por conseguinte, a vítima é vítima do estado que a esventrou para, à luz da lua, ler nas suas entranhas, nas entranhas de um povo, o seu reles futuro. A vítima é no fundo uma vítima da circunstância.”
As velhinhas suspiraram de alívio, o padre arfou um graças a Deus, a mulher do comissário abraçou o marido com um “vamos querido”, o comissário limpou os beiços e num tom vitorioso disse: – “Desvendei mais um crime”. O presidente da república, o primeiro ministro, as aias do primeiro ministro, o presidente da câmara e as suas damas de honra, todos aplaudiram, seguiu-se o povo, o povinho e as crianças tão lindas e inocentes. De um rasgo, o presidente afirma dirigindo-se ao comissário: “Este homem merece uma medalha de honra”, e os já mudos aplausos fizeram novamente ouvir-se.
O pobre agente, agora completamente esquecido, olhava a vítima, lívida, nas escadas de rubro tingidas, as tripas luzindo à luz da lua. Pensou: “o que será o jantar?”